segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Apenas mais um dia de chuva

A chuva, além de assunto freqüente nos elevadores (será que chove hoje?)
é também tema recorrente na música (Chove Chuva / Na Rua, na Chuva, Na
Fazenda). Nos jornais, é pauta obrigatória: os temporais de verão, as
águas de março, a garoa contínua da primavera, a falta dela no inverno,
deixando o ar que respiramos quase visível. E quando os primeiros raios
riscam a tarde ensolarada e quente, é questão de segundos para brotar,
na Praça da Sé ou no Largo 13, o homem que diz: "olha o guarda-chuva, o
pequeno é 8, o grande é 10!". Discutir a diferença entre garoa e
chuvisco é como questionar a partir de quantos degraus se pode chamar de
escada. O fato é que, nos meses mais quentes do ano, os alagamentos
fazem da selva de pedras a terra da canoa, e não da garoa. Os motoristas
ficam agitados, mas o trânsito empaca. Certamente foi num dia de chuva
que surgiu a piadinha segundo a qual carro em Sampa vai pagar IPTU, pois
é bem imóvel. O taxista foi à luta, pois como diz o poeta Vinícius, é só
a chuva que cai do céu. ouve pelo rádio o menos pior dos caminhos, mas o
passageiro impaciente repete pela terceira vez que está atrasado em meia
hora. Um ônibus cruza pela pista da esquerda, livre para ele, e a água
agora se espalha pelo vestido branco da senhorinha que até então sorria.
Uma leitura labial seria impublicável antes da meia noite. Um cego tenta
cruzar a outra metade da avenida, mas o chiar da pista molhada não o
permite identificar se os motores estão a seu favor. Uma estudante sai
correndo, deixando cair sua pasta cheia de xerox rabiscados, que agora
rolavam para o bueiro mais próximo. Ela só perceberia quando chegasse em
casa, já na segunda hora de um novo dia. Pesquisaria o conteúdo do texto
perdido no Google, mas a falta de luz apenas a permitiu acender uma vela
e resar, mesmo que fosse quase atéia. A essas horas a senhorinha do
vestido branco ouvia sobre os 27 pontos de alagamento pelo radinho a
pilha, enquanto o cego procurava no escuro o shampoo, que na verdade era
condicionador. Na ausência de energia, os pingos que vinham do cano e
passavam pela peneira eram tão gelados quanto os da chuva. Pensou então
ser bem dado o nome de chuveiro. Lembrou de quando era ainda criança e
sua mãe dizia que o alvoroço de São Pedro tinha lugar quando alguém
brigava - era uma boa tática para que evitasse as brigas com seu irmão
gêmeo, com quem dividira tantos pingos e raios de sol. A senhorinha
olhava pela varanda o rio de concreto e aguardava ansiosa a chegada do
marido.
 A estudante tentava se recordar da última vez que tinha pisado em uma
Igreja, ainda com sua mãe, que agradecia por sua filha mais velha ter
passado no vestibular. Sentiu uma súbita tristesa pela sua ausência e
então correu para abrir a janela, fazendo com que a água que brotava de
seus olhos se confundisse com os pingos que vinham do céu. Depois sentiu
um orgulho retroativo pela irmã e, lembrando do cego que conhecera na
volta pra casa (atravessaram a rua juntos e por coincidência pegariam o
mesmo ônibus), tentou acender um cigarro com os olhos fechados. O
isqueiro fez uma cócega levemente ardente na ponta de seu dedo, mas
tragou o canudo com força e sentiu-se vitoriosa. Ele também pensava
nela, mas sabia que reencontrá-la seria tão fácil quanto evitar a chuva
desviando por entre os pingos. Seu papo era leve, mas nada fútil; seu
perfume era mais forte que o de terra molhada. Ela desceria um ponto
antes, mas saltou no próximo apenas para ajudá-lo a atravessar outra
avenida. Ainda assim sentiu-se culpada por não ter avisado da possa
d'água. Ficou tão envergonhada que só deu tempo de dizer um "tchal
moço", com a voz abafada pelas mãos que tapavam seu rosto. Ele agora
punha as meias encardidas de molho, ela pisava no cigarro para apagá-lo
e a senhorinha dava três pulinhos ao ouvir a maçaneta da porta. O guiou
pelo braço até a cama, o despiu e, no batuque da chuva, namoraram como
não tinham feito desde o último por de sol em Parati. Diz-se que amor
temporário é chuva de verão, amor impossível é chuva no certão, amor
para sempre é ilusão, mas amor duradouro acaba não (autor desconhecido).
O cego se questionava como seria um arco-íris, enquanto a estudante
aproximava o despertador dos olhos. A noite seria curta, pois sairia
ainda antes de casa, por conta do trânsito. Mas, ao amanhecer, a água só
restava nas sarjetas e nos jornais. A luz já havia voltado, então deu
uma rápida olhada no Google, focando os principais pontos do texto que
virara lixo. O cego dormira ali mesmo, no sofá, ouvindo os pingos se
chocando contra a janela. Acordou num sobressalto, com o rádio no último
volume - era sinal que a luz novamente regava as tomadas. A senhorinha
passava um café para o marido, que ainda dormia como veio ao mundo, e o
rádio falava: vambora vambora, tá na hora vambora. Depois veio Almir
Sater: "é preciso chuva, para florir".

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