quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Meus personagens

Meus personagens sairão de cena por alguns dias nessa coluna, à procura da
batida perfeita (seja de coco, maracujá ou até abacate), água fresca e arrego
para os dedos, mas os ouvidos continuarão abridos, em busca de roteiros menos
repetitivos. Meus personagens gostam de compartilhar, mas esse verbo requer um
complemento: saber o que disperta a curiosidade e entretêm os avatares alheios.
Minhas criaturas rabiscadas se importam mais com pessoas e momentos, mas certas
vezes gostam de viajar por outras paisagens. Ainda sentem-se um bocado
envergonhadas ao penetrarem em terrenos desconhecidos, mas adoravam desfilar
fingindo alguma pressa pela já extinta Rua 24 Horas, auxiliando na geografia e
na diversão dos turistas que procuravam esquentar a fria noite curitibana.
Depois tomaram gosto pelas calçadas planas da Avenida Paulista, os altos e
baixos não geográficos da Augusta, os orelhões e postes da 14 Bis. Em um bronze
de escritório buscaram o sol de Copacabana, ainda que muitas vezes de tênis e
camiseta preta, se acharam nas ruas tortas da Lapa e pensaram em matar a sede na
Lagoa. Meus personagens atravessam as ruas correndo, mas frequentemente evitam
essa curta maratona fazendo amizade com o flanelinha, o olheiro, o segurança da
boate. Meus personagens têm algumas manias e várias idades: por vezes planejam e
filosofam como velhos, se divertem como crianças e criam problemas de uma
adolecência tardia. Meus personagens não querem uma cura, uma mudança radical na
maneira de ver o mundo: apenas querem continuar fazendo parte de maneira intensa
e mudar o que estiver no alcance.
Meus personagens não se satisfazem com os pingos nos is, porque foram
alfabetizados em braille e cada letra, número ou símbolo é formado de ao menos
um pingo. Meus personagens gostam de São Paulo e de São João, de calçadas livres
e de multidão. Meus criados virtuais giram em torno de meus devaneios: falam de
mim, dos tipos que observo, do que sou, pretendo ser ou admiro nos personagens
do mundo lá fora. E eles se sentem mais leves quando rabiscados, lembrados e até
inventados. A cortina que se fecha é só outra página de calendário chegando,
para ser novamente rabiscada. Que 2012 guarde muitos causos, a serem
transformados em postagens. Até lá a todos vocês, a todos nós!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A insustentável leveza dos raios

Dizem que o pior cego é aquele que não quer ver. Quem escreve essas
linhas, com a tela desligada, acredita na existência de dois outros
tipos de "cegos" que merecem certa desconfiança: a do que imagina também
não ser visto,
 a ser abordado em um próximo rabiscar, provavelmente só ano que vem, e
o que se apega a situações que jura ter visto. Trata-se daquele que vê
coisas e espera a solução para problemas que os outros desconhecem.
Encasqueta com a falta de resposta a uma mensagem que a operadora de
celular não enviou, ou fez tantos rodeios que era praticamente
impossível entender se era só algum devaneio ou demandava algum tipo de
manifestação. É algo como esperar um convite para um cineminha
escrevendo que o tempo está chuvoso e que gosta de tal ator. Esse
indivíduo que tem ilusões de ótica Exige confiança, mas se mostra
inseguro. Não quer que a simpática atendente da lanchonete se preocupe
com os degraus que o olham com cara de desafio até a calçada mais
próxima. Comenta que todos os dias sobe até o 7º andar em seu trabalho,
mas fica sem esboçar alguma reação racional quando derruba o suco de
morango e fica mais vermelho que o líquido a melar calça, cadeira e
chão. Fala que não gosta da chuva, mas sente alguma emoção quando ouve o
estrondo que vem dos céus, precedido de um clarão e alguém gritando,
ainda que para dentro: "nossa, esse vai ser forte!". Trovões são como
alguns propósitos: trazem uma luz, fazem o maior estardalhaço, mas
poucas vezes mudam o curso natural das coisas. O fato é que, de trovão
em trovão, as núvens tornam-se menos carregadas e, quando já fartas de
perderem a água que as sustenta, deixam o sol, ou a lua, reassumirem a
direção. Quando se acredita andar nas núvens, ocilações pelo caminho são
certeiras. Áreas de instabilidade não são comuns só nas viagens aéreas,
mas também quando se acredita ter os dois pés no chão. Sem elas a
calmaria seria rotina, passaria despercebida. Um brinde aos sucos
derramados, às meias molhadas, às expectativas construídas em bases
infundadas, às lamentações sem propósito e às idéias passageiras que nos
fazem sacudir a poeira e seguir em frente, deixando no ar a impressão de
que alguma coisa aconteceu.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cada esquina tem seu Judas

Tudo começou no último fim de semana, com bons amigos num bar da Praça
Roosevelt. Lembrávamos de frases para dar aquele desfecho especial quando se
perde o fio da meada, invertendo-se os papéis e deixando o ouvinte com aquela
cara de quem dormiu no ponto. Coisas do tipo "é cada um com o seu" ou "cada
esquina tem seu Judas"! Essa última me fez lembrar que, na verdade, uma esquina
de
fato são quatro, e o objetivo central é explicar o desdobramento prático que
isso tem. Encruzilhadas são pontos de encontros, desencontros, despachos,
conversões perigosas de carros e pedestres. Alguma coisa acontecia em meu
coração, quase todas as manhãs, quando eu cruzava a Ipiranga com São João,
esquina imortalizada pelo velho Caetano. Naquelas calçadas largas e barulhentas,
fácil não era encontrar o ponto certo de cruzar a Ipiranga, pois eu já vinha
pelo lado certo da São João. Braços dos mais diversos credos já me auxiliaram
ali, mas os menos esclarecidos não sabiam qual era qual e, quando eu ia me dar
conta, o trabalho de volta seria dobrado: atravessar ambas. Se o relógio não me
era favorável, como geralmente acontecia, ao invés de aguardar ajuda eu chegava
o mais próximo possível de algum vivente e nos primeiros paços da multidão eu
apenas seguia o fluxo. E aí dava aquele medo de fazer a diagonal judástica e
atravessar as duas vias de uma tacada só, ou então o farol abria e e meu peito
apertava cada vez que uma buzina lá de longe dava o sinal da graça, ou da
extrema unção. Geralmente não era nada além de motoqueiros com problemas de
ereção testando os escapamentos furados antes do momento certo. Se o caminho era
o de volta, valia uma limonada e um bauru no Ponto Chique como recompensa, ou
então algumas poucas vezes um chopinho no Bar Brahma, cujos seguranças já me
conheciam e me ajudavam a atravessar o fatídico entroncamento, apesar de sempre
perguntarem pelo meu cão guia. Ora, todos sabem que não tenho o bichano, mas
parece que todos os cumpanheiros da vista prejudicada são irmãos gêmeos. Fosse
eu um pouco mais Judas, pediria bons drinques e falaria para pendurar na conta
do dono do cachorro. E é nas esquinas que muita coisa acontece: na Vicente
Machado com Visconde do Rio Branco, na Augusta com Antônio Carlos ou na
Riachuelo com Gomes Freire. Os amigos que comentei acima conheci na Aurora com
Andradas, aqui no clássico Bar Leo, centrão de Sampa. Aliás, as melhores geladas
geralmente são tomadas nas esquinas. Naquele dia um deles perguntou se eu ia
atravessar, mas quando eu disse que só aguardava o garçom pra buscar aquele
chopinho, a afinidade começou talvez antes da primeira tulipa. Naquela época eu
ainda morava em Curitiba, onde depois aconteceu situação semelhante, mas sempre
que eu voltava aqui pra Sp os encontros na esquina eram cheios de histórias,
risadas e boas recordações. Em cada encruzilhada tem um Judas: o batedor de
carteira, o cafetão que explora os corpos alheios, o vapor à espera do momento
certo, o encrenqueiro à espera dos truta, aquele que disse ter visto Deus e
promete curar o incurável, o velhote que observa para depois contar para o
bairro todo. Mas em cada esquina tem também o seu Jesus, na forma de uma energia
boa: o pedestre solidário, a senhorinha que anda assoviando uma marchinha do
carnaval de outro século, a estudante panfletista, o contador de histórias, o
segurança atento, o garçom camarada, o notívago em busca de uma prosa etílica. E
assim, nas esquinas, fiz parte de meus poucos amigos e muitos conhecidos,
companheiros de copo ou de mudanças de verde para vermelho no farol.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Teve bola, teve bolo

As comemorações do meu aniversário começaram na sexta. Fui com o pessoal
do trabalho num rodízio de petiscos, foi muito bom rever algumas
figuras. Noite curta, mas intensa. Felizmente o sono veio rápido, porque
o dia seguinte foi longo. Formatura do pré na escola da Nicole, foi aí
que comecei a perceber o quanto o tempo tem acelerado, envelhecemos e
crescemos. Ando cada vez mais babão, é verdade, e lembrar do ano
passado, quando ela falava ao telefone "tô te ligando porque a mamãe
falou pra eu ligar que era seu aniversário" até me fez rir. Ela já pensa
na sua próxima apagada de velas, que vai ser só (e já) em maio, talvez
seja logo depois do papai Noel. À noite teve o já tradicional rolê pela
Augusta, que sempre começa no carrinho das redondas ("vai Corínthians!
uma é 3, duas é 5, gelada gelada)" e termina no Bar do Netão, um ouvido
na pista e outro no balcão, no limite entre fim de noite e começo de
manhã. Dessa vez a cama me chamou antes do clarear, quis me guardar para
quando o Coringão chegasse, e chegou. Almoço farto e tardio com uma das
primeiras pessoas que tão bem me acolheu aqui em Sampa e depois corri
pra casa de grandes amigos assistir ao grande jogo, com uma vuvuzela
pendurada no pescoço e outra que me acompanha de berço, a garganta. Eu,
que pouco sabia sobre o Doutor Sócrates, a invasão do Maraca e outras
páginas da guerreira trajetória alvi-negra, estava mais inquieto que o
meu normal. Era a primeira vez que eu gritaria o "é campeão"! Tinha até
um palmeirense querendo gorar a festa, daqueles que vai pra praia e
volta até com a lingua bronzeada, mas é tão gente boa que não tem como
achar ruim. Minutos finais, a rede não mexeu uma única vez. Confusão
generalizada dentro de campo, nada de apito. Mas era só esperar mais um
pouco, a barulhada era certeira. Pra completar a alegria teve bolo
surpresa, que dia! Nada melhor que estar na companhia de pessoas com
quem temos tanta afinidade, presentes que os últimos 3 anos me
trouxeram. As vuvuzelas incomodaram os tímpanos alheios Augusta a cima e
Paulista abaixo, ah como eu queria ter um carro só pra sair buzinando!
Com a camiseta preta e branca é fácil fazer 10km por litro: "aê
Corínthians,é nóis! vai atravessar?" Quando aqui cheguei muitos dos
gente boa que conheci engrossavam a torcida, rapidamente fazendo brotar
uma simpatia pelo time, que se transformou em paixão da primeira vez que
fui ao Pacaembu. Foram só duas vezes, é verdade, mas são difíceis de
esquecer. O bando de loucos em uma quase virada de ano foi um
descarrego, uma alegria inesquecível. Já perto do Masp despiroquei de
vez. Ergui a grasi (meu "carro") o máximo que pude, como se na ponta
houvesse alguma bandeira. Para quem ainda guarda algum traço de vergonha
do cão de metal, foi o máximo da desencanação no meio daquela catarse
coletiva. Perto da GV, no bar do fanático tricolor (que nem deu as
caras), Gritos, risadas, abraços e a proximidade de casa - o mundo era
corintiano. Lembrando que horas antes encontrei na Augusta um velho
guerreiro dos tempos em que morei na São João, decidi terminar as noites
naquelas quebradas - Bar Azul, cujo dono respirava Corínthians.
Uma recepção morna, um clima de fim de noite - até minha cornetinha da
25 de Março resolveu falhar.

Melhor assim, era hora de começar a pensar no relógio, no começo da
semana. A verdade é que a noção de tempo geralmente está ligada a
eventos. Esperamos tanto por eles, e quando acontecem deixam a alegria e
a saudade das recordações, um vazio e a imaginação fértil para tentar
focar ou inventar outro marcador. A torcida pela escola de samba do
bairro, Uma viagem, uma prova, um reencontro - nessa se passaram 324
meses. A primeira ressaca dos 27 incrivelmente não veio, parte do
metanol deve ter evaporado entre sopros, suor e gritos. A mesma saúde
não demonstrou minha garganta, mas até o fim da semana tudo volta ao
normal. Pra fechar, emendo uma citação com o devido comentário, postada
no Facebook há algum tempo. "Meu ideal de vida é a variedade e a
intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas." (Contardo
Calligaris, Folha de 29/09/11) Equivale ao "se chorei ou se sorri , o
importante é que emoções eu vivi". Vale pros que tem medo de viver e se
envolver, como cada um de nós em diferentes graus. Que venha mais um
bolo de surpresas!