sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Meu amigo Tocha

Ele não usa relógio, a calçada é sua guia
ele não usa calçados, tem os pés no chão
Pedestres passam apressados, é sol de meio-dia
ele não sabe seu nome, mas tem calo na mão
 
Quando cheira azedo, me segura pelo dedo, me causa medo
Quando enche a pança, seu corpo balança, me dá segurança
Quando a cor do sinal muda, me conta da vida, me prende pelo braço
E então o bonequinho fica verde, dá uma pigarreada e aperta o passo
 
Seu nome é Tocha, rei da Rua Rocha
 seu nome é João, dono do quarteirão
 seu nome é pivete, mas não vende chiclete
 seu nome é mendigo, mas me chama de amigo
 
Escrevo em prosa torta, como as ruas do Bixiga
Escrevo sobre um anonimo, escória da sociedade
Escrevo sem cimetria, que diferença faria
e só não vê quem não quer, por toda essa cidade

domingo, 23 de outubro de 2011

Pela tela do computador

Pela tela do computador vejo a foto do prato que um amigo vai comer. Em frente à
mesma tela fiz o meu jantar: pringles, granola e o que mais encontrei nas
gavetas abaixo dela. Pela tela do computador leio o jornal, e enquanto faço a
digestão do empadão de notícias, temperadas com críticas, pimentas do cotidiano,
previsões e batatas frias de ontem, um amigo do Recife me oferece tapioca via
msn. Lá o dia ainda terá uma hora a mais, pois não adotaram o horário de verão.
Não sei se esses 60 minutos serão de grande valia, já que garoa e faz 23 graus,
segundo o site do Weather Chanel, o que deve ser quase inverno para os
pernambucanos. O Facebook informa que outra amiga está no aeroporto, então fica
a pergunta: será que chega ou vai, de Curitiba para Madrid ou São Paulo? Na
verdade não sei de onde a conheço, mas ela sempre aparece na telinha com seus
comentários inteligentes e curtições. Percebo em seu mural que são freqüentes as
passagens por Londrina, Ribeirão Preto e Congonhas. Sendo durante a semana,
provavelmente sejam viajens curtas, feitas a trabalho. Se um dia vier a postar
que o calor é grande, já tenho um comentário na ponta dos dedos: "diz que aí
todas as saunas faliram, porque ninguém queria passar frio lá dentro"! O celular
vibra e na telinha pequena leio um sms informando o resultado do jogo que
assisti escrevendo amenidades no msn. O mundo chama lá fora, com a Vai-Vai
entoando os primeiros acordes do samba campeão. Digito no Google um trecho e o
Youtube cala as vozes que entram pela janela fechada. O Facebook me mostra mais
fotos: a filha de uma amiga ensaiando seus primeiros passos, uma placa grafada
com um erro de ortografia gritante (daqueles de fazer Camões urrar em seu
túmulo), o esquentinha de ontem, a rua apinhada de gente, a cara de transtornado
do cabeçudo quando já passava das 5 (mas o copo não saía de sua mão). Um colega
muda o status para solteiro em menos de 24 horas de um relacionamento sério. Na
parte superior da página abre um anúncio de um site de compras coletivas, que
oferece pratos pela metade do preço. As regras são bastante restritivas e, sendo
fora de mão, volto ao Google e procuro a quantidade de calorias que habitam uma
latinha de cerveja. Abre outro anúncio, dessa vez falando de uma viagem para a
Itália, berço do nhoque (o prato que leva o som de sua ingestão) e do macarrão.
Diz a lenda que este foi invenção dos chineses, mas quando penso em passear pela
Wikipedia para confirmar pisca outra janela: o amigo da tapioca agora oferece
doce de mamão. E então a tela diz quanto tempo já se passou entre uma tapioca e
um filé ao molho madeira. Me dou conta que entre um clique e outro vi o domingo
passar, tão perto e tão longe de amigos, pratos, viagens e fatos. Que venha mais
uma Restaurante Week, o Corinthians seja líder da última rodada, a Vai-vai seja
bicampeã e os vôos não atrasem, são os meus pedidos de hoje. Pode passar a régua
e trazer a conta, que amanhã é dia de tela quente.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

De boca abrida

Pego o celular no criado mudo, acerto o despertador e ele me diz que
terei quase 7 horas para descançar o corpo e a alma. Uma bela
espreguiçada, agradeço mentalmente pelo dia que foi de boas energias,
com tudo o que planejei (e o que não planejei também) dando certo.
Desligo o celular e o fixo (que hoje em dia só tem esse nome, mas pode
passear tranquilamente comigo até o trabalho), pois pretendo realmente
desfrutar dos quase 420 minutos de desconexão. Penso sobre algumas
bobagens quase sérias, aperto o relógio e me dou conta de que alguns
minutos já fazem parte do passado. Apesar de eu não ser o mais pontual
dos terráqueos, tenho uma certa obsessão pelas horas. Por vezes consigo
ter a idéia de quantos minutos se foram, mas o tempo é distorcido pelas
sensações: quando boas, me fazem esquecer dele. Isso chega a ser quase
óbvio, mas estou num estado de raciocínio lento e contínuo, que não me
permite fechar os olhos e embarcar para a próxima página do calendário.
Sim, talvez eu esteja mentindo quando fale em fechar os olhos, mas o que
importa mesmo é o signo das palavras. E signo me remete a horóscopo,
novamente mentiria se eu dissesse que pulo essa parte do jornal. Não me
pauto por ele, mas é legal ler o de ontem, por exemplo, e dar risada da
total falta de sincronicidade ou de sua mais perfeita expressão. Quem
sabe naquela memorável viagem ao Rio constasse algo do tipo "clima nada
propício para viagens, bom para reflexões caseiras ou para descançar o
corpo e alma", ou então o oposto, um "dia bom para novas e passageiras
amizades, autoconfiança e diversão". Diz a lenda que quem sai por último
da redação escreve o horóscopo, e eu não duvido e nem acredito. O que
realmente me intriga é a lua: the dark side of the moon? Pink Floyd e um
bom 12 agora cairiam bem, mas o que ouço é o mais puro silêncio da
madrugada, que a qualquer momento pode ser rasgado por uma freada, uma
sirene, um grito de socorro, um sabiá com megafone ou ecos de um amanhã
que ainda é hoje. Tem gente que consegue continuar um sonho perdido,
como se o acordar fosse apenas o "plin plin" no meio do filme. Sim, quem
sabe um bom filme invocaria aquele soninho que teima em não aparecer,
mas agora meus dedos percorrem o teclado e gostam da brincadeira. Seria
capaz de escrever um filme mudo para cegos (sem audiodescrição), uma
história só de meio (sem pé nem cabeça), ou ainda um longo texto que
seria interrompido ao meio, deixando o leitor mais irritado que eu na
manhã que se avizinha. A privação do sono perturba o meu senso de humor
e o de direção, mas antes eu tivesse vagado como um cão sem dono pela
madrugada ao invés de gastar o lençol nesse rola pra lá e pra cá. Serei
o primeiro leitor da Folha de hoje, que trará em primeira mão as
notícias de ontem? Ou na terceira chamada um portal se abrirá e
acordarei já com o barulinho da máquina de minutos? Então é isso meu
amigo, o tempo não para, mas eu preciso fingir que consegui dominá-lo.
Até a próxima parada!

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Apenas mais um dia de chuva

A chuva, além de assunto freqüente nos elevadores (será que chove hoje?)
é também tema recorrente na música (Chove Chuva / Na Rua, na Chuva, Na
Fazenda). Nos jornais, é pauta obrigatória: os temporais de verão, as
águas de março, a garoa contínua da primavera, a falta dela no inverno,
deixando o ar que respiramos quase visível. E quando os primeiros raios
riscam a tarde ensolarada e quente, é questão de segundos para brotar,
na Praça da Sé ou no Largo 13, o homem que diz: "olha o guarda-chuva, o
pequeno é 8, o grande é 10!". Discutir a diferença entre garoa e
chuvisco é como questionar a partir de quantos degraus se pode chamar de
escada. O fato é que, nos meses mais quentes do ano, os alagamentos
fazem da selva de pedras a terra da canoa, e não da garoa. Os motoristas
ficam agitados, mas o trânsito empaca. Certamente foi num dia de chuva
que surgiu a piadinha segundo a qual carro em Sampa vai pagar IPTU, pois
é bem imóvel. O taxista foi à luta, pois como diz o poeta Vinícius, é só
a chuva que cai do céu. ouve pelo rádio o menos pior dos caminhos, mas o
passageiro impaciente repete pela terceira vez que está atrasado em meia
hora. Um ônibus cruza pela pista da esquerda, livre para ele, e a água
agora se espalha pelo vestido branco da senhorinha que até então sorria.
Uma leitura labial seria impublicável antes da meia noite. Um cego tenta
cruzar a outra metade da avenida, mas o chiar da pista molhada não o
permite identificar se os motores estão a seu favor. Uma estudante sai
correndo, deixando cair sua pasta cheia de xerox rabiscados, que agora
rolavam para o bueiro mais próximo. Ela só perceberia quando chegasse em
casa, já na segunda hora de um novo dia. Pesquisaria o conteúdo do texto
perdido no Google, mas a falta de luz apenas a permitiu acender uma vela
e resar, mesmo que fosse quase atéia. A essas horas a senhorinha do
vestido branco ouvia sobre os 27 pontos de alagamento pelo radinho a
pilha, enquanto o cego procurava no escuro o shampoo, que na verdade era
condicionador. Na ausência de energia, os pingos que vinham do cano e
passavam pela peneira eram tão gelados quanto os da chuva. Pensou então
ser bem dado o nome de chuveiro. Lembrou de quando era ainda criança e
sua mãe dizia que o alvoroço de São Pedro tinha lugar quando alguém
brigava - era uma boa tática para que evitasse as brigas com seu irmão
gêmeo, com quem dividira tantos pingos e raios de sol. A senhorinha
olhava pela varanda o rio de concreto e aguardava ansiosa a chegada do
marido.
 A estudante tentava se recordar da última vez que tinha pisado em uma
Igreja, ainda com sua mãe, que agradecia por sua filha mais velha ter
passado no vestibular. Sentiu uma súbita tristesa pela sua ausência e
então correu para abrir a janela, fazendo com que a água que brotava de
seus olhos se confundisse com os pingos que vinham do céu. Depois sentiu
um orgulho retroativo pela irmã e, lembrando do cego que conhecera na
volta pra casa (atravessaram a rua juntos e por coincidência pegariam o
mesmo ônibus), tentou acender um cigarro com os olhos fechados. O
isqueiro fez uma cócega levemente ardente na ponta de seu dedo, mas
tragou o canudo com força e sentiu-se vitoriosa. Ele também pensava
nela, mas sabia que reencontrá-la seria tão fácil quanto evitar a chuva
desviando por entre os pingos. Seu papo era leve, mas nada fútil; seu
perfume era mais forte que o de terra molhada. Ela desceria um ponto
antes, mas saltou no próximo apenas para ajudá-lo a atravessar outra
avenida. Ainda assim sentiu-se culpada por não ter avisado da possa
d'água. Ficou tão envergonhada que só deu tempo de dizer um "tchal
moço", com a voz abafada pelas mãos que tapavam seu rosto. Ele agora
punha as meias encardidas de molho, ela pisava no cigarro para apagá-lo
e a senhorinha dava três pulinhos ao ouvir a maçaneta da porta. O guiou
pelo braço até a cama, o despiu e, no batuque da chuva, namoraram como
não tinham feito desde o último por de sol em Parati. Diz-se que amor
temporário é chuva de verão, amor impossível é chuva no certão, amor
para sempre é ilusão, mas amor duradouro acaba não (autor desconhecido).
O cego se questionava como seria um arco-íris, enquanto a estudante
aproximava o despertador dos olhos. A noite seria curta, pois sairia
ainda antes de casa, por conta do trânsito. Mas, ao amanhecer, a água só
restava nas sarjetas e nos jornais. A luz já havia voltado, então deu
uma rápida olhada no Google, focando os principais pontos do texto que
virara lixo. O cego dormira ali mesmo, no sofá, ouvindo os pingos se
chocando contra a janela. Acordou num sobressalto, com o rádio no último
volume - era sinal que a luz novamente regava as tomadas. A senhorinha
passava um café para o marido, que ainda dormia como veio ao mundo, e o
rádio falava: vambora vambora, tá na hora vambora. Depois veio Almir
Sater: "é preciso chuva, para florir".

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Audiodescrição

É fato que desde o dia 1º de julho as emissoras brasileiras, por força
de lei, deveriam disponibilizar ao menos 2h de programação semanal com o
recurso da audiodescrição. É um recurso fantástico de inclusão, que
consiste numa descrição clara e objetiva de tudo aquilo que se
compreende visualmente e não se depreende dos diálogos. Como exemplos,
expressões faciais e corporais que tenham algum valor para o
desenvolvimento da história, descrições das cenas e cenários, figurinos
e mudanças de tempo e espaço. Imagine que, após um diálogo caliente,
toca uma música e o cego fica ali imaginando os corpos despidos em
movimento, quando na verdade sequer se beijaram.. Poizé, a imaginação
vai longe e, sem a descrição de cenas, é fácil se dispersar (ainda mais
se for alguém inquieto como eu). O pior pode acontecer se o filme todo
puder ser compreendido tão somente pelos diálogos, mas acabar em uma
cena muda. Foi mais ou menos o que aconteceu quando assisti ao "O Homem
que Copiava", "Ônibus 174" ou à minissérie do Chico na Globo, "O Amor em
4 Atos". Aí o jeito é recorrer ao São Google, ligar para aquela pessoa
que sabe de tudo e não se importa com o relógio, pedir socorro nas redes
sociais ou imaginar um desfecho mais ou menos coerente. Mas com a
audiodescrição a imaginação pode se focar nos detalhes, propiciando uma
compreensão plena e envolvente do programa. Há quem possa imaginar que
não faz sentido descrever uma explosão de cores, naves e raios (Avatar)
a alguém que sequer viu a cor do mar, mas essa idéia pode ser bem
equivocada. É ali que o cabeção vibra e viaja, prestando a atenção em
paralelo nos diálogos e barulhos. É nessas horas que até esqueço que sou
cego e deixo todas as sensações me invadirem! Copiando trecho do site
audescrição.com.br, que eu recomendo: "A audiodescrição permite que o
usuário receba a informação contida na imagem ao mesmo tempo em que esta
aparece, possibilitando que a pessoa desfrute integralmente da obra,
seguindo a trama e captando a subjetividade da narrativa, da mesma forma
que alguém que enxerga. As descrições acontecem nos espaços entre os
diálogos e nas pausas entre as informações sonoras do filme ou
espetáculo, nunca se sobrepondo ao conteúdo sonoro relevante, de forma
que a informação audiodescrita se harmoniza com os sons do filme".
Infelizmente ainda são raros os programas e filmes em que o recurso é
disponibilizado. O Teatro Vivo traz a audiodescrição em suas peças e há
outras iniciativas louváveis, como o festival Melhores Filmes no Sine
Sesc. Foi lá que assisti ao Avatar e ao Tropa de Elite 2. Sorrisão de
orelha a orelha, descendo a Augusta lembrando de cada detalhe e as vezes
trocando idéia com outros que voltavam do mesmo lugar. Na Tv aberta, os
filmes exibidos no Tela Quente e Temperatura Máxima (Globo), o Chaves no
SBT e o Comédia MTV atualmente são os únicos. E hoje tive o privilégio
de assistir ao Kung Fu Panda, que me inspirou a escrever essa postagem.
Tudo bem que o filme é de 2008 e realmente espero não ter que aguardar
até 2014 para assistir ao Kung Fu Panda 2, mas a largada foi dada e
sinceramente fico na expectativa de que muito mais do que a lei prevê
seja disponibilizado. Mando um "salve" ao pessoal da Iguale Comunicação,
Lavoro Produções e Instituto Vivo, e fecho com uma frase que certamente
já li em outra época e lugar, mas é sempre boa de ser lembrada: "o ontem
é história, o amanhã mistério; O hoje uma dádiva, daí receber o nome de
presente." (Mestre Oogway, Kung Fu Panda).