segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mais uma dose

Nessa noite meus goles eram diminutos e pausados, quase tímidos como eu. Antes
mesmo de a bexiga dar sinal de vida decidi por pra fora o que em menos de uma
hora faria volume. Procurei um canto escuro, daqueles em que a bengala faz eco
ao bater. Ninguém passou, ninguém viu. Viro à direita, desço os degraus da
perpendicular e, novamente à direita, estou na mesma quadra grande, mas quase no
seu fim. Me sinto tão livre e cheio de mim nessas já tão conhecidas paralelas
que sempre se encontram. Alguém gozava do meu time, dizendo que se encontrasse
um e-mail sem título era só encaminhar ao Corinthians. Quis entrar na
brincadeira, e logo você, que eu ainda não sabia o nome nem tamanho, mas me
chamou a atenção, começou a rir dos absurdos quase verdadeiros que eu falava.
Nos aproximamos cada vez mais. Agora eu já conhecia seus cabelos, seu rosto
ficaria para um pouco depois. Não tenho costume de tocar as pessoas, ao menos
que haja um porquê. Quando dei por mim você fazia abrir minha boca, olhava nos
meus olhos e dizia, as vezes com firmeza, as vezes com a lingua querendo
embaralhar: não importa que você é assim! Isso me brochava e me encorajava, a
querer mostrar que as coisas não mudam, em que pese meu olhar seja diferente.
Mas me apertava cada vez mais contra você, sua boca parecia querer me engolir.
Eu ria, suspirava, alisava seus cabelos, o nariz passeava pelo cheirinho bom do
seu pescoço. Depois você quis que não fosse só o nariz, e não só o pescoço. Ó,
que cena passava pela minha cabeça: o ceguinho tarado abusando da moça levemente
embriagada, ou vice-versa (inclusive invertendo-se os complementos). Até quando
vou dar crédito a vozes imaginárias, que brotam de uma consciência que não sei
se é minha? O limite para não ouvi-la seria mais uma dose (é claro que eu quero
sim, a noite nunca tem fim, por que que a gente é assim)? Acho que não. Hoje
penso que a bebida dá o impulso, mas a idéia já tava lá. E aí você diz que
precisa ir no banheiro e eu penso: nos encontramos pela vontade de urinar, nos
desencontraremos também por ela. Você quis me falar do degrau, mas seu braço já
tinha me avisado antes. Desfilamos pelas mesas de sinuca, você seguiu e eu
fiquei ali parado. Perguntei para aqueles que te cumprimentaram se você tava com
eles. Sendo positiva a resposta, respirei aliviado, pigarreei, fiz cara de "não
te conheço mesmo", ensaiei um "valeu boa noite", parei o jogo por passar
raspando na mesa. Num susto desci o degrau e a calçada, repleta de gente,
convidativa pra tomar o restinho do birigético e gastar a ponteira da bengala.
Eis que, quando a última gota ainda descia goela abaixo, você ressurge, me
botando contra a parede. Foi tudo como da primeira vez, só que agora mais rápido
e intenso. Perguntei onde morava, mas você só quis rir e dizer que era longe.
Consultei os bolsos, pensando na remota possibilidade de te acompanhar num
táxi.Vi que não daria, então pensei em te levar pra minha. A verdade é que
simpatizei com você, tanto faz se me jogasse na cama como fez na parede,
quisesse conversar de amenidades ou acordasse no fim da noite histericamente,
querendo saber quem eu era, se estava longe de casa e como veio parar ali. Fui
pelo caminho que me parecia mais óbvio: questionei então se você voltaria com
eles (os que a cumprimentaram perto das mesas de sinuca). Novamente suspirei
quando balançou a cabeça para frente e para trás, querendo dizer que sim. Você
ensaiava dizer mais uma vez aquilo, que não importava que eu não, mas agora era
eu quem calava a sua boca com a minha. Fomos interrompidos por suas amigas: a
essa altura eu já sabia os nomes, embora ainda não tivesse gravado qual
correspondia a cada uma delas. Estavam querendo partir. Sei como é depender de
alguém para voltar e esse alguém esquecer das horas e do sono alheio, então,
evitando pensar muito, me despedi. Não sem antes perguntar seu contato no
Facebook. Acabei anotando na cabeça também o de uma de suas amigas. Chegando em
casa, ligaria o computador ainda antes de passar no banheiro ou na cozinha, mas
a verdade é que entrei sem precisar passar por esses 2 cômodos. Tomei a saideira
com os sabiás e cheguei tão leve que o que fiz foi escovar os dentes andando
pela casa, como de costume. Dormi pensando em você, acordei querendo te
esquecer. Não que eu tenha motivo para isso, mas é o tempo quem irá se
encarregar de. Achei 3 homônimas suas: duas moram no Rio e uma em outro
continente. Semana que vem trocarei as calçadas cinzas pelas cariocas, mas você
mora lá mesmo? Por lá encontrarei outras Marias, outras Cristinas, ouvindo Maria
Rita (não deixe o samba morrer) ou Teresa Cristina (noite alta é meu dia). Quem
sabe um dia você me encontra voltando apressado do almoço, num sol de meio dia .
Na Paulista os faróis já vão se abrir, mas eu me fecho pensando em alguém que
está longe, que não é mais você. Embora eu seja assim, e isso pra você não tenha
importado, a imagem que ficou foi boa, e eu gostaria de vê-la de novo, ainda que
no reflexo imaginário de um espelho. Você passaria minhas mãos pelo vidro e me
tiraria o fôlego.
 Mudo a estação, as fragrâncias. Mudam-se os nomes das ruas e pessoas, os
degraus, os sotaques, os copos. E algo parece que lentamente vai mudando dentro
de mim. Quero só continuar na leveza do canto dos sabiás, porque começo a
entender que realmente uma noite nunca tem fim e a gente é mesmo assim.

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