quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cada esquina tem seu Judas

Tudo começou no último fim de semana, com bons amigos num bar da Praça
Roosevelt. Lembrávamos de frases para dar aquele desfecho especial quando se
perde o fio da meada, invertendo-se os papéis e deixando o ouvinte com aquela
cara de quem dormiu no ponto. Coisas do tipo "é cada um com o seu" ou "cada
esquina tem seu Judas"! Essa última me fez lembrar que, na verdade, uma esquina
de
fato são quatro, e o objetivo central é explicar o desdobramento prático que
isso tem. Encruzilhadas são pontos de encontros, desencontros, despachos,
conversões perigosas de carros e pedestres. Alguma coisa acontecia em meu
coração, quase todas as manhãs, quando eu cruzava a Ipiranga com São João,
esquina imortalizada pelo velho Caetano. Naquelas calçadas largas e barulhentas,
fácil não era encontrar o ponto certo de cruzar a Ipiranga, pois eu já vinha
pelo lado certo da São João. Braços dos mais diversos credos já me auxiliaram
ali, mas os menos esclarecidos não sabiam qual era qual e, quando eu ia me dar
conta, o trabalho de volta seria dobrado: atravessar ambas. Se o relógio não me
era favorável, como geralmente acontecia, ao invés de aguardar ajuda eu chegava
o mais próximo possível de algum vivente e nos primeiros paços da multidão eu
apenas seguia o fluxo. E aí dava aquele medo de fazer a diagonal judástica e
atravessar as duas vias de uma tacada só, ou então o farol abria e e meu peito
apertava cada vez que uma buzina lá de longe dava o sinal da graça, ou da
extrema unção. Geralmente não era nada além de motoqueiros com problemas de
ereção testando os escapamentos furados antes do momento certo. Se o caminho era
o de volta, valia uma limonada e um bauru no Ponto Chique como recompensa, ou
então algumas poucas vezes um chopinho no Bar Brahma, cujos seguranças já me
conheciam e me ajudavam a atravessar o fatídico entroncamento, apesar de sempre
perguntarem pelo meu cão guia. Ora, todos sabem que não tenho o bichano, mas
parece que todos os cumpanheiros da vista prejudicada são irmãos gêmeos. Fosse
eu um pouco mais Judas, pediria bons drinques e falaria para pendurar na conta
do dono do cachorro. E é nas esquinas que muita coisa acontece: na Vicente
Machado com Visconde do Rio Branco, na Augusta com Antônio Carlos ou na
Riachuelo com Gomes Freire. Os amigos que comentei acima conheci na Aurora com
Andradas, aqui no clássico Bar Leo, centrão de Sampa. Aliás, as melhores geladas
geralmente são tomadas nas esquinas. Naquele dia um deles perguntou se eu ia
atravessar, mas quando eu disse que só aguardava o garçom pra buscar aquele
chopinho, a afinidade começou talvez antes da primeira tulipa. Naquela época eu
ainda morava em Curitiba, onde depois aconteceu situação semelhante, mas sempre
que eu voltava aqui pra Sp os encontros na esquina eram cheios de histórias,
risadas e boas recordações. Em cada encruzilhada tem um Judas: o batedor de
carteira, o cafetão que explora os corpos alheios, o vapor à espera do momento
certo, o encrenqueiro à espera dos truta, aquele que disse ter visto Deus e
promete curar o incurável, o velhote que observa para depois contar para o
bairro todo. Mas em cada esquina tem também o seu Jesus, na forma de uma energia
boa: o pedestre solidário, a senhorinha que anda assoviando uma marchinha do
carnaval de outro século, a estudante panfletista, o contador de histórias, o
segurança atento, o garçom camarada, o notívago em busca de uma prosa etílica. E
assim, nas esquinas, fiz parte de meus poucos amigos e muitos conhecidos,
companheiros de copo ou de mudanças de verde para vermelho no farol.

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