quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cachoeira do Escorrega

http://www.youtube.com/watch?v=nSGoxRpCqME">
Assista ao vídeo
Essa semana foi meio atípica por aqui, com férias de 3 dias e uma saudável
bagunça aqui em casa. Então, depois de um final de semana de reencontro com
grandes amigos (alguns deles fizeram parte da viagem que descrevo abaixo)
 e uma bela escorregada na rotina, resolvi compartilhar esse texto, vivido e
escrito em novembro de 2009.
Saudades da água correndo e a gente quase parando, por ser mais gelada que a
cerveja tomada no restaurante do Cezar! Descrever o escorrega é algo que tô
tentando desde o fim da tarde. Poderia dizer que foi fechar os olhos e cair na
água gelada, ou então que a iluminação da tela me desconsentra, mas agora estou
com o monitor desligado e nenhum pensamento minimamente lógico e cordenado
invade a mente. 5ª tentativa: Depois da descoberta da história da enchente de
66, fiquei ansioso pelo domingo, hipoteticamente o dia rabiscado no roteiro para
a visita à Cachoeira do Escorrega. Seria uma pedra gigante e lisa, de onde
brotaria um aguaceiro capaz de me levar para baixo na velocidade do som, ou de
um pensamento engasgado? Sendo algo natural, e portanto não planejado, seria a
declividade muito acentuada, com intermitências, vales, crateras, desvios ou
outros acidentes de percurso? Dada a força da água, ter os olhos apenas como
buraco capaz de diferir a presença ou ausência de luz faria alguma diferença
significativa em uma eventual tentativa de mudança de rota? Tentei comparar com
qualquer outra situação de fortes emoções, como tirolesa em Bento Gonçalves, o
mar de gente no show da Maria Rita na virada cultural, os carros enfurecendo os
motores antes de eu chegar em algum meio-fio. Mas tudo aquilo era construção
humana, de certa forma planejada. Envolto nessa nuvem de pensamentos,
comparações e questionamentos, meu coração acelerava querendo dizer sim (ou, já
que a moda é copiar, "Yes, we can"). Eu tinha assumido o risco, mas se algo
acontecesse de nada adiantaria sem ter exteriorizado. A Dani e o Nei analisavam,
me contavam da posição das pessoas que desciam, tentavam me descrever o
percurso, o que me deixava com uma vontade ainda maior de partilhar da mesma
emoção.
Alguns meses atrás alguém comentou comigo que existia um restaurante maravilhoso
perto de meu trabalho, mas que eu não poderia ir lá porque havia uma grande
escadaria na entrada. Naquele domingo o Nei foi me conduzindo pela trilha
íngreme, com escadas de raízes, pedras com um bocado de limo e terra seca - as
vezes pelo braço, as vezes num trenzinho composto de apenas 2 vagões. A
composição pensou em rumar para trás quando eu percebi que a subida era maior do
que eu pensava, mas o maquinista pulsante do peito mandou prosseguir. Em fim
começamos a descer, e eu com um puta medo de que logo escorregasse em pé mesmo.
Na hora e lugar certos o Nei falou para eu sentar, com as mãos para trás (seria
o assalto das águas). Me rendi, dei um impulso e logo meu traseiro roçava a
pedra cada vez mais molhada. Peguei velocidade e logo empaquei em um lugar um
pouco mais reto, ralando muito de leve parte do calcanhar e do cotovelo. E se eu
empacasse no meio da pedra, que direção seguir? Seria algo improvável, pois o
curso natural das coisas é te levar por onde há mais água. Novo impulso e,
quando fui me dar conta, já estava no poço de água gelada, embora parecesse
quente pela adrenalina. Foi tudo muito rápido, mas deu tempo para a foto e
alguns olhares curiosos, espantados, admiradores ou até compreensivos de outros
turistas como nós. Se eu não podia imaginar a cara dos outros, não fazia a
mínima idéia da minha. Não lembro se soltei um "tesão pra caralho", ou outra
frase igualmente elaborada e espontânea, quando um deles me guiou até a parte
onde havia pedras. Quando me dei conta eu já estava respondendo um "vambora" à
pergunta do Nei: topa ir de novo? Subimos a trilha, dessa vez sem escorregar.
Sentei na pedra, deixei os braços no colo, porque percebi que seriam tão úteis
quanto meus olhos arregalados. Num deslise praticamente uniforme as águas me
levaram novamente de encontro ao poço. Senti o vento, o frio na barriga e,
embora a velocidade que peguei fosse maior, a queda foi "leve, livre e solta".
As águas geladas, os braços gentis que me conduziram até as pedras. Dessa vez
não deu nem tempo de dizer nada, só sorri desencanado. E assim é a vida, feita
de pequenos riscos que se juntam pra formar um colorido indecifrável. O que
seria de nós sem nossos medos, vontades e realizações? Valeu Nei, Dani e Sérgio!
**
Abaixo trecho de e-mail enviado pelo Claudinei, com um belo poema sobre o medo:
"Você enfrentou as trilhas e os 30 metros do escorrega da mesma forma que enfrenta a selva de pedra que é Sampa, com um sorriso no rosto e uma piada na ponta da
língua.
Ao ler seu relato, me lembrei (vagamente) de uma poesia que falava sobre o tema, como minha memória não tem capacidade de reter por muito tempo uma poesia, me vali
do Google para achá-la. Segue abaixo:
O medo
Antonio Candido
        "Porque há para todos nós um problema sério...
         Este problema é o do medo."
                   (Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração)

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo."

Nenhum comentário:

Postar um comentário