quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Os Outros

Saía de um compromisso, no atraso já quase cotidiano, e seguia para outro - esse
sim indispensável, por garantir o sustento no final do mês. Dormira um sono
agitado na noite anterior, mas consegui chegar até a academia pensando no
dinheiro jogado fora, na necessidade de algum apego ao corpo pra de, alguma
forma, minimizar o ponto perdido na caça pelo fato de não enxergar - ter algum
assunto a prender a atenção de quem seguro o braço também ajudava. Mas naquele
intervalo de tempo poucos braços apareceram, as únicas palavras que eu às vezes
ouvia era um "pra direita, pra esquerda". Me enrosquei em todas as obras
possíveis, a cada passo imaginava cones e cavaletes, britadeiras e areia.
Buracos se sucediam, num deles quase o pé ficou e a perna continuou. Desvia dali
e daqui, por vezes parecia que os carros, sempre tão velozes, estavam a poucos
centímetros daquele corpo que andava de forma mecânica: a perna direita, o braço
esquerdo batendo a bengala, a perna esquerda, o braço direito - e assim
sucessivamente até parar num poste ou amontoado de lixo. Tropeço num pano ou
cobertor encardido, a partir de então, além das britadeiras imagino todos os
moradores de rua me seguindo. Um desnível me faz desistir também da pressa, era
preciso fingir alguma calma. Latas móveis e barulhentas brotavam de todos os
lados na próxima esquina, aproveitei pra tentar ver as horas no celular, mas o
aparelho não respondia a nenhum comando. Achei perigoso ficar ali, acariciando o
visor em busca de alguma palavra - agora, além das britadeiras e mendigos,
trombadinhas me olhavam com cara de próxima vítima. O barulho parou, tomei
impulso e só percebi que traçara uma diagonal quando demorei a encontrar a
sarjeta. Nela tive vontade de ficar, quando meus pés sentiram a água parada e
fétida no exato momento em que meu pulso roçou uma árvore e começou a arder.
Ainda meio atordoado, procurei encontrar o sentido da rua de maior movimento e
segui em uma caminhada quase uniforme até o próximo orelhão em que minha cabeça
se acomodou. Tiro do gancho, escuto o "tuuuu" comprido e rio, talvez de
desespero. Penso em ligar pra ela, mas já não tinha mais clima ou motivo. O
gosto da fumaça me enoja um pouco, mas puxo o ar e finjo tragar um longo
cigarro. Sigo a caminhada, na próxima esquina em fim um braço falante e emotivo.
Me contava da vida difícil no sertão, do irmão alcoólatra, da gravidez
indesejada, da tia com câncer. Uns 13 minutos depois, a mão pequena apertou a
minha e aí cada qual seguiu seu caminho. Faltava só mais uma quadra, ali eu já
sabia o sentido das ruas e o percurso de olhos fechados - algo me fez recuperar
a segurança. Cheguei ao meu destino, o povo simpático da recepção me fez tentar
retribuir o sorriso. O ar-condicionado já amenizava meu suor, aos poucos os
demais sentidos foram voltando. Não sentia fome, parecia não haver nenhuma
notícia triste de alguém da família ou próximo. Nada como a desgraça alheia pra
nos reconfortar e fazer sentir vergonha dos nossos reclames.

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