terça-feira, 3 de julho de 2012

quarto.txt

Depois de passar horas em pé, recebendo flores, ouvindo conselhos, orações e
lamentações, não via a hora de se deitar. Era um estúdio pequeno, próximo ao
metrô e ao escritório em que trabalharam juntos pelos últimos dez anos. Da porta
de entrada já se avistava a cama, que naquele dia encontrava-se desarrumada. Nas
paredes quadros abstratos, araras com roupas penduradas, a televisão de
proporções avantajadas, a gaiola vazia e o espelho. Despiu-se, ensaiou um bocejo
e Esparramou-se numa cama demasiadamente grande. Nenhum canal de televisão foi
capaz de reter sua atenção por mais de alguns segundos. Desligou o aparelho e
colocou-se próxima à janela, que estava entreaberta. Garoava, pingos brotavam do
céu e de seus olhos. Sentiu vontade de seguí-los, numa viagem de aproximadamente
45 metros. Se seu parceiro teve a coragem, por que ela não teria? Será que se
encontrariam lá em baixo, ou ele conseguira convencer o porteiro celestial de
que foi um mero acidente? Quanta perspicácia em partir sem sequer se despedir,
quanta covardia em abandonar tantos projetos, angústias e sonhos em comum. Um
pensamento a perturbava desde a primeira revista, em busca de alguma carta,
e-mail ou outro sinal: o que ele não quis dizer em palavras, mas disse com a
queda? Lembrou-se do carinho que ele fazia em seus pés descalços, dos beijos
demorados na última ida à praia, das caricaturas que colocava por debaixo da
porta. Tudo aquilo não mais fazia sentido? Fechou bruscamente as encardidas
cortinas ao lembrar de que suas roupas estavam no sofá cama, onde despencou sem
pestanejar. Quem mais se importava com sua nudez, quem mais notava seus lapsos
de memória? Ainda deitada, suas mãos alcançaram a gaveta mais próxima. Escondida
entre contas a pagar, caricaturas e retratos, uma caixa com alguns comprimidos
que lhe garantiriam horas de sono, quem sabe meses ou anos.

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